Compartilho aqui um artigo do meu amigo Diego Mendonça, uma resposta ao artigo extremamente equivocado publicado por Marcelo Caixeta no jornal Diário da Manhã. Este texto do Diego me emocionou, tanto com seu embasamento, que contrapõe as opiniões rasas e preconceituosas de Caixeta, como pela sua esperança de que nós, seres humanos, podemos ir além da brutalidade e do autoristarismo.
Como a exclusão, a intolerância e a ignorância contribuem com o aumento da violência no Brasil
Diego Mendonça*
Texto em resposta à opinião publicada pelo Médico Psiquiatra Marcelo Caixeta no Jornal Diário da Manhã no dia 1 de janeiro de 2013.
“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
Frase atribuída a Martin Luther King
Perplexidade! É o primeiro sentimento que me ocorreu ao findar a leitura do texto do Sr Marcelo Caixeta, médico especializado em Psiquiatria do Adolescente, publicado no Diário da Manhã no primeiro dia do ano de 2013. Logo vieram outras reações – indignação, raiva, pena, risos e por fim a paciência, principalmente histórica, que me impulsionou a redigir algumas linhas.
Importante identificar meu lugar de fala: sou homem, heterossexual, branco, vivente de uma condição econômica descrita comumente como “Classe Média”, pai de uma linda menina de 3 anos, e integrante de uma família nuclear composta por 3 pessoas – eu, minha companheira e nossa filhinha. Sei que não é muito agradável essa descrição, mas o contexto demanda certa localização.
Analisando o texto do referido psiquiatra, podemos rapidamente identificar uma confusão de conceitos e conclusões – apontamento da legislação vigente como pura e unicamente de “inspiração feminista”; uma visão limitada da categoria “Trabalho” e seu desenvolvimento histórico, processual e contraditório, logo dialético; argumentação conveniente do recurso à violência no processo educativo e sua condenação consequente e desprendida em outras situações e relações sociais; o desprezo por propostas lógicas ao se argumentar a importância da unidade familiar nucleada como o diálogo entre pais e filhos; a autoridade máxima do homem (viril) na experiência social e suas variadas relações; conceitos pessoais e subjetivos tratados de forma universalizada e paradoxal, como a referência a uma possível “verdadeira felicidade”; e por fim, a mistificação da violência focando em um de seus aspectos, grave porém não único, o número elevado de homicídios, tratado de forma descontextualizada sem identificação social, econômica, de gênero, de grupo, etc., o que oculta possíveis motivações e uma análise mais próxima à realidade, prejudicando o julgamento e a consequente elaboração e aplicação de políticas públicas que possam contribuir para a resolução da questão.
Em primeiro lugar, vamos desconstruir a pecha negativada destinada ao “feminismo”, termo que alcançou um grau elevado de estigmatização no argumento do autor. O “feminismo” (em aspas para lembrar a diversidade de suas correntes e linhas de ação), assim como várias outras inspirações e princípios coletivos, como os vários movimentos contestatórios e de libertação mundo a fora, foram e ainda são fundamentais no processo de aprimoramento democrático. Basta lembrar que até bem pouco tempo atrás as mulheres não podiam votar ou expressar livremente suas opiniões. O mesmo ocorria com os negros e com a população indígena, que eram forçados ao trabalho escravo. Foram os movimentos inspirados em ideais libertários que através da ação superaram essa situação.
Como todo processo histórico, essa transformação tem sido lenta e envolta por contradições. As mulheres, os negros, indígenas, ainda lutam por direitos inalienáveis e para ocuparem espaços representativos na sociedade, já que suas realidades seguem sendo, em grande parte, a vivência cotidiana da exclusão social e econômica, da opressão, da estigmatização, e da violência, em escalas pessoais e institucionais.
A democracia é um projeto em constante construção, e se na experiência contemporânea gozamos de direitos fundamentais, é graças à ininterrupta luta e conquista dos segmentos, grupos e povos oprimidos que através da organização e da ação transformaram a realidade, ao custo de muitas vidas. Dentro deste grupo fundamental às transformações sociais, sejam econômicas, culturais ou políticas, devemos incluir com toda a convicção o movimento das mulheres, que segue em luta contra a hegemonia do patriarcado e sua violência diária.
Vivemos em uma sociedade de domínio patriarcal, na qual a mulher é tratada como objeto ao bel-prazer do homem, que é estimulado a ser viril. Nesta sociedade a violência é banalizada na formação educacional e cultural de seus indivíduos, excluindo-se propostas contra-hegemônicas que visam processos emancipatórios. Ensinar a uma criança, através do exemplo, que a violência resolve e educa, e é legitimada por um discurso de autoridade familiar e afetiva, contribui para formar mentalidades onde o uso da força para se alcançar os objetivos é naturalizado. E é importante reafirmar que esse comportamento é tolerado muitas das vezes se fazendo uma distinção de gênero, algo do tipo – meninos são agressivos e meninas são vulneráveis / meninos brincam com armas de brinquedo e meninas com bonecas / meninos tem a curiosidade aguçada e as meninas tem a sua altamente reprimida em nome de um tal “recatamento”. Claro que são só alguns exemplos, mas servem para apontar o tipo de formação hegemônica que temos na sociedade, isso sem fazer recorte de classe e/ou de raça, o que multiplicaria imensamente as contradições.
Fica a pergunta – como os princípios “feministas” contribuem com a violência? Segundo o caro psiquiatra, é graças ao “abrandamento” e à falta de “pulso firme e corretivo” na formação, ressaltando que esse papel cabe ao pai. Ora, se o “feminismo” visa justamente a extinção da opressão, a realização de processos de formação equitativos, o fim da violência, tanto doméstica quanto social, o respeito entre os parceiros e à diferença, uma vida digna pra todos, como essas ideias podem se converter em potenciais propulsores da violência? Não seria o contrário? A insegurança do patriarcado vendo suas posições confortáveis sendo partilhadas pelas antes subjugadas mulheres não estaria gerando uma reação violenta?
Ainda seguindo a argumentação do texto, cabe questionar outro ponto levantado - Seria a “verdadeira felicidade” um atributo concedido aos homens viris, possuidores de autoridade, e das mulheres que vivem sob o jugo de seus “machos”? Seriamente me pergunto como pode existir felicidade se não em um ambiente harmonioso onde a liberdade e o respeito sejam considerados fundamentais. A não preocupação com o outro me parece uma característica comum aos psicopatas, e uma sociedade que assegura a felicidade de alguns sobre os demais, em diferentes âmbitos e relações, terceirizando as responsabilidades e dissabores sempre ao outro, só pode ser uma sociedade psicopata, não doutor? E quem quer viver em uma sociedade com tão grave patologia?
Vamos lembrar da contestação histórica ao sonho de correntes psiquiátricas que almejam a adequação total e inquestionável do indivíduo ao corpo social, adequação essa que se baseia no princípio dos fins justificando os meios, sustentada ideologicamente por setores conservadores que não admitem a diferença ou os questionamentos dos códigos instituídos. Por certo esses grupos respaldam a felicidade e o condicionamento proporcionado pelas drogas legalizadas e a reclusão compulsória, justificando a necessidade desse ato em prol da coletividade, a deles, claro. Essas correntes da Psiquiatria colaboraram historicamente como arcabouço acadêmico e retaguarda médica para o processo de “assepsia/limpeza social” e outras barbaridades. É a realização da política do controle total, dos corpos e das mentes.
Não causa estranhamento se associarmos essas políticas e princípios defendidos por essa Psiquiatria com a legitimação da existência de grupos de extermínio para “corrigir” (como diz o autor) essa suposta patologia social que é o “indivíduo transgressor, um adolescente com educação liberal que só, e unicamente por isso, comete ilícitos e crimes”. É o ocultamento do triunfo da barbárie de uma sociedade que se especializou em estimular o consumo desenfreado, excluir, criminalizar, “corrigir” e exterminar os ditos “problemas”. Não cabe uma análise mais profunda e sensível que considere outros vetores e recortes. Tudo está muito claro. O que resta ao poder público é executar a “correção” e a limpeza, e se esse não o faz, os “cidadãos de bem” legitimamente o fazem, gozando ainda de cobertura do espetáculo midiático.
A Mídia e seu papel merece um destaque nesse processo. Os veículos e seus produtores não se preocupam em desmistificar a violência e buscar encontrar suas causas, pressionando assim o poder público e pautando a sociedade. Ela antes se aproveita do contexto da violência, da vulnerabilidade emocional e psicológica das pessoas através de tramas sensacionalistas, cumpre a agenda de seus anunciantes, em grande maioria os governos de situação e empresas e corporações que acima de tudo visam o lucro, vende o discurso da segurança pública pautada na tolerância zero e confundo seus interlocutores sobre a importância dos Direitos Humanos, tratado na maior parte das vezes como um entrave à justiça, isso quando não apregoam o absurdo chavão “Direitos Humanos para humanos direitos”.
Dito isso, é preciso relembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu em um contexto de pós-guerra, massacres e em geral de ausência de legislação específica sobre o tema, o que levou a humanidade a sistematizar certos direitos inalienáveis e universais para todo e qualquer ser humano, e que quase todos os países assinaram e incorporaram em suas legislações, dentre eles o Brasil. Essa sistematização e sua redação não foi um processo guiado exclusivamente por feministas, elas estiveram presentes sim, mas antes foi uma síntese jurídica, política, cultural e social que busca assegurar direitos básicos para toda a humanidade baseados na justiça, na liberdade, na paz, na solidariedade e na dignidade. Seriam estes conceitos que estariam contribuindo para o aumento da violência no Brasil ou o seu desrespeito? E como poderíamos culpar as mulheres por isso?
Quase 64 anos depois da Declaração, não vivemos em um contexto de guerra declarada no Brasil, mas há quem diga que vivemos uma situação de guerra contínua, com a institucionalização da exclusão, da desigualdade social e a criminalização da pobreza, segmento que vê seus jovens tombarem dia após dia e recebe em resposta parcas campanhas e políticas de compensação social.
Como se pode facilmente constatar, as orientações presentes no texto da Declaração dos Direitos Humanos continua atual e a busca por sua implementação se mostra urgente. Na segunda década do século XXI a violência não cessou, se considerarmos em um contexto amplo em que ela se apresenta pulverizada nas relações, em termos de escala ela só cresceu. Em particular, a situação de violência contra as mulheres segue existindo, apesar de iniciativas e avanços como o caso da Lei Maria da Penha. Todos os dias os casos de violência doméstica e estupro ocupam manchetes e ocorrências policiais, isso sem mencionar os inúmeros casos que permanecem ocultos, que acredito serem de maior quantidade que os publicizados. Se a violência contra as mulheres continua existindo, a luta de seus setores organizados é justa e legítima, e a busca pela inserção de preceitos equitativos nos processos de formação também.
Ainda cabe dizer que no Brasil, um grande esforço tem sido realizado com o objetivo de formular diretrizes e implementar políticas públicas no âmbito dos Direitos Humanos. A realização mais notável nesse sentido é o Programa Nacional de Direitos Humanos, que se encontra em sua terceira versão e foi elaborado em um processo com participação popular, e sofreu e tem sido alvo de ataques e duras críticas dos setores mais conservadores da sociedade que intencionam manter seu padrão de vida, suas práticas e privilégios, como é o caso dos ruralistas, militares, muitas agrupações religiosas e a grande mídia.
Dado tanto esforço coletivo, diverso, histórico e processual no sentido do aprimoramento da democracia, como se pode em um ato covarde culpar mais uma vez um grupo que segue em condições desfavoráveis e oprimido em diferentes aspectos como as mulheres e suas vertentes de atuação política denominadas de “Feminismo”?
Por fim, é preciso trazer à luz a complexidade do tema Violência. Destacar um de seus aspectos ou consequências, no caso o alto número de homicídios, e universalizar indiscriminadamente sem aprofundar e buscar compreender as causas - estruturantes, morais, políticas, psicológicas, religiosas – contribui antes para a mistificação da situação e não contribui para a construção de propostas efetivas a serem convertidas em políticas públicas. É muito cômodo realizar a análise imediata, rasa e pontual dos casos e tecer a conclusão baseada nas próprias crenças, sem levar em consideração o arcabouço histórico social e político que é diverso e complexo. É óbvio que se precisa de ações urgentemente, mas elas devem ser baseadas seguindo preceitos dos Direitos Humanos e da legislação vigente, contar com a participação popular, com a família e grupos de afinidade e apoio, e não se tolerar a sedução por soluções impulsivas e bárbaras como a buscada por grupos de extermínio e as políticas de higienização social.
Podemos considerar que a violência tenha aumentado, mas não que aumentou somente no caso de crimes cometidos por adolescentes “zumbis” (como afirma o doutor) desajustados. A violência aumentou graças ao abismo social e econômico produzido pela enorme desigualdade de nossa sociedade, aumentou impulsionada pelos desejos e vazio resultantes da sociedade de consumo, e sua política de competição e rivalidade constante, pelo estímulo à virilidade, intolerância e autoritarismo proferidos pelo Modus Operandi do patriarcado, pela atuação do Estado e seus braços armados, pela ininterrupta venda da política do medo e isolamento e o desprezo por experiências coletivas e comunitárias, pelo fanatismo homofóbico e religioso, pela corrupção e a hegemonia de um sistema político hermético, melindroso e inacessível, pelos conteúdos e valores transmitidos pela grande mídia e sua própria estrutura vertical e autoritária, pela exclusão no espaço urbano e a consequente política de periferização da pobreza, pela usura bancária e a transmissão de seus valores pela sobreposição dos demais em busca de “ser um vencedor”, graças ao modo de produção que se alimenta constantemente da violência, e incontáveis outros fatores. Os adolescentes são só a ponta, caro psiquiatra, pegá-los pra “boi de piranha” é muito fácil.
A “caça às bruxas” (que aqui parece ter um sentido literal dado o grau misógeno no texto do Sr Marcelo) não ganha eco em uma sociedade consciente e democrática, mesmo que em constante construção. Precisamos transformar a sociedade a fundo e superar os preconceitos, a intolerância e promover a justiça social. Quem sabe assim consigamos realmente diminuir a taxa de homicídios e os índices de violência, sem que pra isso seja preciso recorrer a artifícios absurdos como culpar o “Feminismo” e as mulheres por inspirarem e elaborarem uma legislação tolerante que supostamente acarrete jovens violentos e preguiçosos.
Espero sinceramente que minha filha cresça em um mundo que a trate com respeito, carinho e equidade e que possa viver sem medo de ser violentada ou oprimida por um homem, e que possa vivenciar a cidade como um espaço público e coletivo, onde as políticas de limpeza social e controle total dos indivíduos sejam coisas do passado ou ficção científica.
* Diego Mendonça é realizador audiovisual, micro empreendedor, poeta e pai.
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